quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O chinês alto e façanhudo que parece desconfortável dentro do seu blazer de cor indefinida, agarra-se quase em desespero  às cordas da Fender para disfarçar o embaraço, lançando-se numa imitação  razoável de Elton John em "Candle in the Wind" versão "Diana post-morten". Há quem o ignore. Casais incompatíveis debruçam-se sobre mesas pequenas e redondas nas quais os copos de whisky repartem  o espaço com cinzeiros e pires de aperitivos. As cabeças quase tocam umas nas outras.  Talvez façam juras de amor eterno, mas duvido. É mais provável que combinem friamente as verbas das transações. A rapariguinha magra de olhos enormes e reluzentes olha-me enquanto ouve, ou finge escutar, as palavras em catadupa do velho de dentes amarelecidos que tem a gola da camisa suja de suor. Que lhe dará em troca de dinheiro?  Carinho não, certamente. Tempo, quanto muito. E, afinal, o nosso tempo vale assim tanto que haja sempre alguém que esteja disposto a pagar-nos por ele? Ela não se pergunta, porque está abstracta, de olhos vagos, oblíquos, luminosos. Pergunto-me eu. "You've lived your life like a candle in the wind...". Há quem esteja atento. A cerveja morrendo no copo, o corpo amolecido encostado a uma coluna, a cabeça pendendo de quando em vez. Ou talvez ninguém esteja atento, afinal. Distracção a minha. Talvez o único atento seja o chinês desconfortável dedilhando a Fender sem paixão, só com embaraço. Um gordo de óculos embirra com o porteiro do bar e espeta-lhe o indicador em riste, perigosamente apontando a narizes sentados. Lá fora, na rua, raparigas caminham para lá e para cá, passinhos de bailarina a deslizarem na procura de pescar clientes com relances e sem palavras. Entre o alcóol e a música, os olhos perderam o brilho. Pareceu-me que tinha lido neles alguma coisa. Mas não. Perdi-me apenas nos erros de ortografia das incompreensíveis páginas da noite.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Os sonos trocados pelo relógio biológico que dá horas quando não deve. Ao menos se lhe pudesse acertar os ponteiros... Nada parece fazer sentido. Nem as manhãs se parecem como tal, nem as noites tem a textura das noites. É como se brincasse à cabra-cega com os hábitos do meu corpo. Ideias difusas, instintos desencontrados, claridade quando se espera escuridão. O corpo moído, a indiferença das olheiras pesadas, pés arrastados na perigosa indiferença dos passos descontrolados. Se a Branca de Neve me deixasse so me faltava a barba e o barrete e encarnava bem o Zangado... Algo anormal em mim... Devo mesmo parecer acabado...

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

O que mais estranho em mim, desde que soube da morte do meu filho, é esta secura de alma, esta resistência surda, esta renúncia a tudo, como se para tanto não fosse preciso a coragen que nunca tive.
Lembro-me vagamente de fazer a mala do meu marido e de lhe dizer
Vai!
Sem ansiedade, sem raiva, sem emoção. Apenas Vai! como se fosse uma viagem, como se, tantas vezes aconteceu, ele partisse e eu ficasse. Como se lhe dissesse:
A minha bênção para as tuas amantes porcas, os teus amigos embriagados e as noitas prevertidas.
Lembro-me de o ter visto vacilar, indeciso como sempre, aquele cheiro a tabaco impregnado nas camisas, misturado com o doce perfume de mulher. Lembro-me de o ter ouvido um
porquê agora,
ou talvez tivesse sido apenas um simples e único
Porquê,
e lembro-me de nada dizer, estava tudo dito, depois de vinte e oito anos a nossa vida resumia-se a uma pequena palavrinha:
Vai!
E ele foi, num gesto incrédulo de criança que enfrenta a escola pela primeira vez, e eu senti-me aliviada. Seca, mas profundamente aliviada. Comigo estou, afinal, como devo estar. Como já há muito, deveria estar. Ruminando esta raiva, alimentada a ódio por esta minha Pátria assassina.
Orgulho...
Que orgulho pode uma mãe ter pela morte de um filho? Só porque militares fardados lhe chegam à porta e lhe dizem que o filho morreu pela pátria?
Raios os partam a todos mais a Pátria que o levou!
A minha vida sempre foi um teatro de sombras, de falsidades, de fingimentos. Amar a Pátria, cantar o hino, rezar em Fátima, casar e servir. Sempre, e acima de tudo, servir. Servir a Deus, servir o marido, servir o filho, a Pátria, quem nos ama e quem não nos ama, servir na cozinha, servir na cama, na lida da casa e ter orgulho nisso, ter orgulho em ter uma serva que nunca questiona porque serve. Servir de joelhos ou de perna aberta. Servir os que de mim se servem...

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Sinto os olhares, num desconforto que não sei dizer. Subo a rua numa suposta indiferença que não é. olho as montras sem manifestar grande interesse e sigo num vagar propositado. Alguns vendedores aproximam-se mais, alguns atrevem-me a tocar-me no braço, misturam as palavras numa desordem de línguas e de gramática, tal e qual as lojas desarrumadas. tentam adivinhar a minha origem, eu sei. Acham-me provavelmente italiana. Menos espanhola. Raramente francesa. Nunca, por nunca, portuguesa. É engraçado este jogo de adivinhas. Fico parada a olhar uma gaiola dourada. Lindíssima, trabalhada até ao limite numa arte de arames e de cores. E eu,
pode ser bonita uma prisão?
Estou rodeada de pequenos homens, quase patéticos nos passinhos de chinês e no esforço sofridamente patético por me venderem uma gaiola. Mas eu,
-Estou só a ver, não quero
Ver e não querer. Não combina, é pouco provável para eles. Por isso as vozes alargam a intensidade e cada vez aumenta o número de homens á minha volta. Não sei de onde vieram. As mulheres ficam longe, observam. Expectantes, meio escondidas nos seus lenços negros, que lhes asseguram um suposto direito a virtudes obrigatórias. os homens parecem cada vez mais febris. Alguns trazem enormes gaiolas nas mãos, o que me assusta. Parece que me querem meter lá dentro, o que me assusta...

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Doi-me a cabeça. Um vácuo de onde não posso sair. O longe e o perto das memórias latejam. Saudades de um copo virado ao fresco húmido do mar, a Inês encostada a mim, de costas, em silêncio, estendendo-me os seus dedos estreitos e suaves com um cigarro amarrotado e pesado. Humido o pedido:
-porque não experimentas, ao menos, uma vez?
Escureço por dentro.
Vejo o meu pai sentado, de cravo vermelho preso na camisa dos quadrados verdes que lhe deram pelo Natal no escritório, cabelo comprido, revolto até aos ombros, fotografia emoldurada,
o tudo ou o nada que dele conheço,
como se estivesse, realmente, vivo, a falar-me dos Beatles e sa Lucky in sky with diamonds,
LSD?
Talvez, quem sabe, o meu pai que tão esforçadamente inventei, alguma vez alucinado à espera de uma ressaca de vómitos e exanquecas.
Como às vezes a Inês,
estranho não é isso. estranho é conhecer um pai apenas por uma fotografia ou pela voz ainda apaixonada da minha mãe.
O teu pai foi um heroí da revolução,
Essa revolução que para mim não faz sentido, porque disso nunca tive dúvidas,
os verdadeiros heroís não se deixam morrer antes de os filhos nascerem...
Aquele beijo foi um ímpeto. Irresistível. Selvagem. Louco. Mais aqueles olhos verdes janelas abertas para mim, os lábios malícia cereja,
velha cena de cinema,
quartos de hotel no mesmo piso, o elevador que propicia proximidades inesperadas, um olhar, um gesto, um toque de sensualidade,
talvez estudada,
a despedida lenta, passos de tartaruga na encruzilhada do corredor de alcatifa macia, o silêncio da madrugada, a televisão a debitar baboseiras lãnguidas de amores impossíveis, o tempo a escorregar-nos pelo corpo devagar devagarinho, nós a adiarmos um tão fácil, seco,
Boa noite! ,
um passo, um simples pequeno passo. Afinal, do tamanho do Mundo, e sempre aqueles olhos janelas abertas ao beijo e ao riso. E o sorriso a principio enigmático como o da Gioconda, mas que se foi abrindo por debaixo daqueles olhos,
o espelho da alma,
-Não me faças esperar mais este desejo
foi o que me disse, ou, pelo menos, o que eu ouvi que disse. A porta do quarto a fechar-se, deixando o mundo lá fora entretido com as suas voltas de 24 horas, uma brisa de sensatez inconveniente,
- E o teu marido?...
A admiração disfarçada na segurança de um gesto de enfado
-Deita-se cedo... sempre se deitou cedo demais...